segunda-feira

Aqui Bóbó, ali as 40 concubinas

Tenho 42 anos de idade, dizem-me que tenho 42 anos, a sociedade diz-me que é este o meu tempo de vida até ao momento presente, mas é a mesma sociedade que me diz as afirmações mais ridículas e tão fora da minha mais sentida realidade, que se esta minha realidade tivesse forma de medir o tempo e se essa forma fosse medida em anos, talvez eu não tivesse este número, 42.
Trabalho numa tabacaria, e isto não foi preciso ninguém me dizer, porque muito cedo na minha vida, mais propriamente quando a sociedade me dizia que eu tinha 12 anos, o senti muito verdadeiramente na minha pele.
Hoje, sou dono da tabacaria, mais propriamente, hà três anos bem medidos que sou dono desta tabacaria, tudo porque o meu pai morreu e eu herdei-a, não morreu de cancro no pulmão ou de ataque de coração como se podia supor, mas morreu de tédio, porque quando a sociedade lhe dizia que ele tinha já 68 anos de vida, o que ele sentia que não tinha era energia para fazer mais vezes companhia às 40 senhoras que moravam, e moram, nos dois pisos acima da nossa tabacaria.
A fonte da minha sobrevivência e do vício de uns tantos outros fica na entrada de um prédio com três pisos, mais propriamente no número 2 da travessa dos prazeres, nos dois primeiros pisos do prédio, existia, e existe uma grande casa onde moram e trabalham 40 maravilhosas senhoras, costureiras que remendam vidas já rotas e encardidas.
Meu pai e elas, e agora eu e elas, somos assim como sócios, todos os clientes que se servem dos serviços destas maravilhosas senhoras, compram inevitavelmente um maço de cigarros antes de subir e muitas vezes outro depois de descerem, mesmo o meu pai e mais recentemente eu, que nunca fumámos, sempre que lá vamos a cima, conviver com estas 40 concubinas, levamos um maço de cigarros, é mais ou menos como uma senha, parece que para lá ir, à toca destas gueixas, é necessário a chave certa. E eu por sorte vendo-a, mesmo à porta. Não deve existir melhor negócio que vender chaves à porta da mesma que está fechada, que vender drogas ao pé de pessoas envoltas de conflitos interiores, que vender armas ao pé de pessoas cheias de conflitos exteriores; e por isto eu e meu pai, bem como qualquer presidente dos EUA temos algo em comum, somos donos de um dos melhores negócios do mundo.
Se bem que nós nunca morámos numa casa branca, a nossa infelizmente sempre foi bem cinzenta, talvez por isso sempre gostámos tanto dos dois pisos acima da nossa mais conhecida divisão, porque a casa das nossas concubinas é vermelha.
A tabacaria sempre foi a divisão mais conhecida por mim e pelo meu pai, mais propriamente porque
passávamos aqui dentro muito tempo, tempo sentido; mas também porque sempre nos dividiu, é que eu sempre gostei mais de vender a portugueses suaves, e ver as suas expressões ao subir e ao descer do nº2 1ºandar da travessa dos prazeres, e o meu pai sempre quis vender a english special players.
Quanto à minha mãe, é tudo mais complicado, nunca a conheci como tal, nunca a conheci como sendo minha mãe.
O meu pai contou-me tantas histórias diferentes acerca dela que cedo percebi que tudo o que ele me dizia não passava de grandes fábulas ou sonhos ou desejos de como ele sonhava ou queria que ela fosse.
Penso mesmo que a minha verdadeira mãe será uma das nossas vizinhas e sócias, a senhora Jolly que tem neste momento 65 anos de vida, mas que tem uma vida tão vivida para a qual o número 65 não é nada.
Nunca quis ter a certeza se serei filho da madame Jolly ou não, mas existe dentro de mim essa certeza e isso basta-me.
Até aos meus 12 anos estive num colégio interno, só estava com o meu pai aos fins-de-semana e por isso nunca o conheci muito bem, nem me lembro de até aí o ter visto com alguém, até esse momento ele, para mim, era a pessoa mais sozinha do mundo, nunca consegui imaginar sequer que ele talvez tivesse um outro mundo onde vivia aos dias da semana.
Saí do colégio com 12 anos, tudo porque já estava farto daquela minha realidade, rodeado de filhos de empresários, diplomatas, economistas, no fundo até aos meus 12anos vivi rodeado de filhos de criminosos e foi nessa altura que tive a primeira e talvez mais importante conversa com o meu pai, mais importante talvez por ter sido a primeira.
Disse-lhe que queria ir trabalhar para a tabacaria, de início ele não gostou da ideia, mas lá aceitou e foi desde então que comecei a conhecer verdadeiramente o pai que tinha.
Nunca o vi com outras mulheres que não fossem as nossas 40 vizinhas ou a senhora Rosalina que vende legumes num pequeno estabelecimento três prédios depois do nosso.
A dona Rosalina é uma mulher baixa, um pouco gorda mas com uma genica e energia invejável, para quem fuma três maços de cigarros por dia como ela. Sempre senti que também ela tinha certas invejas na vida, e a maior de todas era não ser companheira de vida das nossas 40 fantasias vivas. Só que a casa da madame Jolly só tem lugar para estas 40 almas e então o tempo foi passando e a dona Rosalina nunca conseguiu vaga.
No entanto conseguiu aceitar esse obstáculo à sua felicidade, conversando e bebendo e fumando e ouvindo meu pai e as suas histórias ocorridas no nº2 da travessa dos prazeres, tenho mesmo a sensação que algumas vezes meu pai deve ter acedido aos insistentes pedidos da dona Rosalina para ele lhe mostrar de uma forma mais carnal o que realmente acontecia naquele abrigo contra a sociedade.
E meu pai deve ter-lho mostrado de bom grado.
Ontem em conversa com a Jolly, uma mulher que é mais que minha mãe, é aquela pessoa que tem que existir na vida de todos nós, aquela pessoa que nos sabe ouvir e com quem é fácil comunicar; eu dizia-lhe que o único erro que a vi cometer na vida, foi o de nunca ter aproveitado as qualidades da dona Rosalina, dando-lhe uma oportunidade. É que a Rosalina é uma mulher que devido à sua experiência de vida, sabe tratar de uma forma muito especial qualquer legume, ela sabe arranjar grelos, ela sabe descascar tomates, e existem poucas pessoas que misturem tão bem grelos e tomates, fazendo uma salada inimaginável.
Fui conversar com a Jolly e estou a contar-vos esta história, porque preciso falar acerca desta minha vida, dizem-me que tenho 42 anos, sei que sou dono de uma tabacaria, sei que tenho um mundo e uma realidade minha, realidade essa que tem sido harmoniosa e simples de viver, todos os problemas que tenho tido nesta minha vida, têm sido daqueles problemas inevitáveis e que por não terem solução nem são verdadeiramente problemas, coisas como a morte do meu pai, ou um cliente mal disposto que descarrega em mim, uns dias que amanhecem a chover quando tudo o que eu queria era viver um dia de sol.
Tinha uma vida simples e sabia vivê-la, tinha tudo o que queria e sonhava, tinha o meu negócio, tinha as minhas vizinhas e os meus amigos, tinha 40 lindas mulheres que me fazem companhia em qualquer altura, tinha-me a mim.
Só que hà dois meses atrás aconteceu o que nunca tinha acontecido antes na minha vida, e que já nem me lembrava que poderia acontecer e que até já tinha parado de sonhar que acontecesse.
Há dois meses a mais maravilhosa das desgraças atracou na minha vida.
Faz dois meses que me apaixonei.
Chama-se Linda, quer dizer a sociedade diz-me que ela se chama Joana, mas é a mesma sociedade que me diz que uma relação entre um homem de 42 com uma mulher de 22 anos é impossível, a sociedade que me diz que um homem sozinho hà tanto tempo já não sabe estar acompanhado, a mesma sociedade que me diz que uma mulher linda nunca se vai apaixonar por um homem tão banal como eu, no fundo a mesma sociedade que me diz que não é nem inteligente nem tão pouco verosímil ou tão só realizável eu sentir aquilo que sei que sinto. Por isso acho que já provei claramente que ela se chama Linda.
Foi há dois meses, não fazia ainda 5 minutos que tinha aberto a tabacaria, como já andava a dormir mal, como se a minha alma já pressentisse o que estava para acontecer. Nesse dia acordei bem cedo, abri a tabacaria era ainda 7:45 da manhã, é nestas alturas que sempre me pergunto porque é que ainda não vendo jornais também.
Passado alguns minutos, ainda eu não tinha tido oportunidade nem sequer necessidade de ligar a máquina registadora, entra pelo prédio e pára junto ao balcão da tabacaria, uma mulher linda, linda e com certeza linda, linda de seu nome.
Não foi preciso mais que isto.
O que já sentia que não seria inevitável acontecer, inevitavelmente aconteceu.
Ela olhou para mim de uma forma ao mesmo tempo tímida e atrevida, o meu coração começou a bater mais forte, a minha tabacaria que nem 2 metros quadrados tem, passou a ser igualmente gigantesca como claustrofóbica, mas lá consegui chegar ao balcão e perguntar-lhe se ela desejava algo, aliás como era minha presumível obrigação. Ao que ela respondeu medrosamente que talvez eu a pudesse ajudar, depois de eu me predispor a isso ela lá conseguiu dizer a que vinha.
Perguntou-me se eu sabia onde era a casa da madame Jolly.
Ainda não fazia dois minutos que a inevitável paixão tinha chegado à minha vida. Desembarcada na linha 42 da estação da mesma e já me trazia a primeira dúvida, a primeira ansiedade cruel, depois de me ter dado uma ansiedade atrevida e estimulante, trazia-me agora um monstro que consumia o meu interior mais longínquo.
Não sabia o que sentir ou pensar, percebi logo à partida que afinal até eu tinha preconceitos em relação às minhas vizinhas e esse foi só um dos primeiros alicerces da minha estação que ela destruiu, a seguir senti como a minha tabacaria era pequena e suja e como este espaço onde existo hà tanto tempo é tão pouco atraente ou estimulante, estava destruído o segundo alicerce e para terminar a demolição senti como sou já um homem velho e desinteressante. Fui ao fundo.
No estado em que estava nem sei se lhe quis, ou não, dizer o que disse, mas lá a informei que para ir a casa da madame Jolly era preciso apenas seguir em frente.
E pronto, aquilo que já era tão seguro para mim, aquilo que eu já conhecia tão bem, e onde já me tinha habituado a viver, ou seja a minha realidade estava assim desmoronada.
Nunca tinha estado tanto tempo sem ir a casa da minha amiga Jolly e nunca me tinha sido tão difícil de entrar neste espaço onde hoje escrevo e onde entro desde os meus 12 anos como ontem, ou hoje.
E é isto que a paixão afinal faz a um homem, finalmente percebi porque é que certos homens que são meus clientes bem como da madame Jolly há tantos anos, têm um aspecto perdido, pesado, triste mas ao mesmo tempo sonhador e inebriante.
Porque afinal de contas, as mulheres são a razão da vida e da morte, da alegria e da tristeza, da angústia e do entusiasmo, no fundo são a razão da realidade de qualquer homem, mesmo de um vendedor de cigarros, velho e banal, sujo e desinteressante, pobre e pouco culto ou inteligente mas sempre e sempre sonhador como eu.

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