terça-feira




Nada tenho que ver com a vida quando caminho sozinho sem ter ninguém que me segure a mão, ninguém que me beije a cara quando choro porque não sei para onde vamos, e pelas esquinas me arrasto com os outros, e o meu reflexo nas vitrinas não é mais que um suspiro fantasmal do outro rapaz que já não existe.
Nada tenho que ver com a vida quando percorro a cidade que desconheço, na companhia de outros estranhos com rostos de cinza e passados que já ninguém recorda. A fé há muito que desapareceu, e nada mais resta que o nada que está para vir, anunciado na tristeza incomensurável deste céu cinzento.
Nada tenho que ver com a vida quando a vou deixando para trás pelas valas e sarjetas, e desfilo em silêncio nesta caminhada sem fim com os outros fantasmas ambulantes.
Nada tenho que ver com esta cidade em ruínas, nem com a ruína que fizeram do meu coração, ainda que seja nesta cidade que se traçou o destino dos nossos dias.
Das janelas saem ainda os sinais da tragédia, despojos da miséria que chegou, as roupas esquecidas ainda penduradas, o espanto por todo o lado como uma tripa esventrada. Nas casas não vive ninguém já, e ao entardecer parecem tumbas silenciosas que assistem à nossa marcha. Nelas houve um dia risos, e nelas se encontravam os que se amavam pelas manhas, e eu vivi também um dia numa casa assim.
Nada tenho que ver com a vida quando esta me morde o coração a cada passo, e entre as lágrimas que já ninguém limpa do meu rosto, desejo ardentemente que todos pudessem estar vivos, e que tudo pudesse começar de novo.

3 opiniões:

LuisElMau disse...

K. presinto quem somos como o teu rapaz, nada temos que ver com tudo isto.
Lindo texto e obrigado por vires brincar.
Um Abraço.

Manel disse...

"Das janelas saem ainda os sinais da tragédia, despojos da miséria que chegou, as roupas esquecidas ainda penduradas, o espanto por todo o lado como uma tripa esventrada."

Não se encontra em qualquer formigueiro, esta nostalgia nas palavras, esta tristeza, esta beleza. Bom, bom, sou suspeita, sinto-me um pouco madrinha deste feliz casamento. Madrinha babada, pois claro...

(E vê-se logo que é do Porto, teve de arranjar maneira de bem colocar a palavra tripa, ah, murcon!...)

K. disse...

:D


Bem, na verdade a palavra tripa saíu num sentido bem mais visceral, mas gostei dessa analogia que encontraste.