quinta-feira

Imagem a contextualizar #03 - by ElMau

Fotografia de Henri Cartier Bresson


Eu sou o que quiser ser, não sou isto, sou maior que este sobretudo, não vão ser aqueles homens lá atrás com as suas armas e as suas fardas que me vão dizer o que eu sou ou deixo de ser, eu sou o que eu quiser ser.
Posso voar, abrir este chapéu-de-chuva e planar do céu até onde quiser ir.
Todos estes quadrados no chão, parecem uma grade, querem prender-nos, todos me querem prender, prender a este chão, a este país frio e cheio de neve. Mas eu não sinto frio, eu sinto o que eu quiser.
Agora tenho que caminhar, não tenho outra alternativa, em tempos neste meu país existiram pessoas como eu, que sonharam e acreditaram que era possível concretizar o sonho, mas eu não vou desistir, eu vou conseguir realizar os meus sonhos, e todos vamos ser mais felizes um dia, agora tenho que caminhar e carregar com este sobretudo maior que eu e com este chapéu-de-chuva que não voa, sobre esta calçada que não me larga os pés.
Todas estas pessoas olham para o chão como eu, mas eu olho e vejo o mundo todo, o futuro e o passado, caminho nesta passada lenta porque o presente está quase parado, todos carregam os seus bens mais preciosos, e choram pelo que deixaram para trás. Eu não choro, os homens não choram, eu sonho e um dia vou concretizar, um dia ninguém vai ter bens preciosos, um dia todos nós vamos ser absolutamente preciosos uns para os outros.
A mim não me fazem chorar aqueles homens com as suas fardas e as suas armas, podem querer destruir tudo e até podem conseguir, mas a mim não me destroem, até me podem matar com uma bala na cabeça, mas nunca vão conseguir destruir o que de mais belo e verdadeiro tenho em mim, a minha imaginação e os meus sonhos eles não destroem.
Amanhã, quando este sobretudo já for muito mais pequeno que eu, talvez nesse dia, todos percebam que eu também cresço, ai quem sabe já vão olhar para mim de frente, estúpidos, não conseguem perceber que dentro de cada um de nós existe um mundo belo a explorar.
Dizem que sou criança, como se isso fosse pouco ou mau, criancices com esse juízo de valor e adjectivo é o que estes homens com as suas armas e fardas andam a fazer neste mundo, isso é que é criancice da pior espécie. Eu não, eu imagino, eu sonho, eu realizo.
A minha mãe, coitada não para de chorar, vem carregada que mal se aguenta em pé e ainda conseguiu trazer um ramo de flores, coitada, já não sonha só fica a chorar pelo presente e a lembrar o passado que já lá vai.
Do meu pai já não sabemos faz algum tempo, teve que vestir uma farda e segurar uma arma e partiu, eu sei que ele já não volta, mas a minha mão continua a acreditar que sim, coitada. Eu sei que o vou encontrar mais vezes, nos meus sonhos e no meu mundo, é lá que brinco com ele, é lá que jogo dominó com ele, quase sempre ganho mas acho que é porque ele me deixa ganhar.
Dizem-me que sou pobre, porque só tenho esta roupa e porque não tenho comida e por vezes tenho fome, não sabem nada de nada as pessoas, dizem que sou pobre, se elas conseguissem vir ao meu mundo, se quisessem, viriam e sentiriam a riqueza que eu tenho.
Eu sou o que eu quiser ser.

“Quero, terei -
Se não aqui,
Noutro lugar que inda não sei.
Nada perdi.
Tudo serei.” (Fernando Pessoa)

16 opiniões:

Lucia disse...

gostei muito do teu texto. tenho uma amiga minha que me deixou uma frase que nunca me esqueci: a vida é aquilo que fazes dela.

sem dúvida que somos aquilo que quisermos ser :)

boa escolha de Pessoa ;)

esta imagem é um desafio! vou ver se me inspiro.

LuisElMau disse...

obrigado lucia.
vê lá se matas menos desta vez ;)
olha lá, não vais ao jantar da SU? tenho pena se não fores.
Beijo.

Maura disse...

Grande foto e grande texto, El Mau!

Não é fácil pensar numa contextualização para esta foto! Uma criança em cenário de guerra não é propriamente algo que tenhamos vivido, como um beijo numa esplanada ou um café numa casa de chá!

Esta nem me atrevo a contextualizar!

Carlota Joaquina disse...

Perdoe-me o vernáculo, caro el mau, mas, foda-se, você acredita mesmo que da cabeça de um puto ranhoso como o da fotografia sairia algum dia metafísica existencialista?

Maura disse...

Excelentíssima Carlota Joaquina, perdoe-me a intromissão na conversa que não era dirigida a esta sua criada, mas parece-me que está enganada e que já se esqueceu (como quase todos nós) de como é ser criança! Há lá metafísicos mais existencialistas que as crianças?!

Anónimo disse...

tu continuas a escrever maravilhosamente! lucia por favor mata alguem cria uma imagem de marca! mal posso esperar lol

Anónimo disse...

Ora sao oito passos desde sitio ate aquele outro e mais um e meio ate aqui...quando conseguir fazer tudo isto repetidamente e cada vez melhor fico mesmo feliz.
É nestes momentos que eu gosto de ser pequenino. A minha volta toda a gente parece triste e carregado mesmo aqueles cujos fardos nao sao assim tao pesados. A mim so me pesa o casaco que e do meu avo que mo deu a mim para eu nao ter frio.
Ca por mim continuo a brincar a decorar quantos passos dei ate chegar a este sitio que eu consigo pintar de mil cores por cima do preto e branco que me rodeia, eu ca salto em cima das possas que a chuva deixou, chuva molha parvos. Dentro dos meus olhinhos pequeninos, porque eu sou pequenino, brilha o maior sol de todos no azul das minhas costas.
Hoje acordei com musica de circo e por aqui cada esquina tem colado um cartaz que tem magicos, palhaços cavalinhos um trapezio...
Quando la fui espreitar o senhor da porta pareceu.me simpatico. Se calhar peço-lhe para entrar e depois escondo-me e vou com eles de viagem. Com um bocadinho alguem me ensina alguma coisa e assim posso la ficar por uns tempos. Era giro...e eu como sou pequenino posso aprender. O avo diz que eu aprendo rapido.
Olha...esta a começar a chover ainda bem que trouxe guarda chuva.
Pensando melhor...andar a chuva de chapeu de chuva nao tem piada, vou mas é aproveitar as possas que aqui esta tudo tao ocupado que ninguem vai reparar se por acaso for atingingido com uns salpicos de agua...eu ca sou pequinino e nao tenho medo de me molhar...

Anónimo disse...

na linha seis é "um bocadinho de sorte" lol

LuisElMau disse...

Minha Rainha, apareça sempre e quero dizer-lhe que da cabeça desta criança que lhe escreve sai muita metafisica.

Maura é isso mesmo, eu lembrei-me há pouco da criança que sou e estou maravilhado com isso.

nobody, obrigado pelo elogio à minha escrita e também eu estou em pulgas com o texto que espero receber da lucia. não percebi a história da linha seis, mas sei que não é sorte o que precisas.

beijos e abraços a todos.

susemad disse...

Tantos sonhos, tantas certezas, tantos pensamentos e devaneios... Está excelente!
Afinal o miúdo sempre dever ter ouvido falar de "guardas-chuva voadores"!
Nos sonhos sempre ouvimos falar de tantas e tantas coisas...

LuisElMau disse...

tons de azul, obrigado pelas palavras e pela visita.
não queres antes de ler as várias constextualizações que por aí andam, olhar para a imagem e escrever também um pouco das tuas palavras?

Um Beijo ou Abraço e volta sempre.

Anónimo disse...

eu já sou o que quero ser.
sempre sonhei quando abria o guarda-fatos do meu pai vestir este sobretudo, este casaco, estes sapatos. adorava como eles ficavam grandes. e eu sentia-me grande. lá em casa riam-se. e eu pensava um dia quando eu tiver o meu sobretudo, os meus sapatos, respeitar-me-ão!
hoje a minha mãe acordou-me e obrigou-me à pressa a vestir este meu sonho. mas quando cheguei à rua todo inchado de orgulho por mostrar a roupa do meu pai, ninguém me respeitou. uns riam-se outros choravam. os de sacos às costas choravam, os de armas à frente riam-se.
preferi começar a olhar para o chão, para não ver aquelas caras desfiguradas, e penso: não era assim que eu queria ser!
os sapatos tornam-se desconfortáveis, o sobretudo horrivelmente pesado. e eu não percebo porque é que não pude trazer a minha roupa vestida. Peço as minhas roupas à minha mãe. ela diz-me: as tuas roupas já não servem para nada. já não és criança. Vais crescer e são estas as roupas de que precisas.
Olhei para as pedras, para os quadrados enquanto me separavam da minha mãe...
ela tinha razão.
pouco depois o sobretudo ja me servia. já não era um estranho. e penso como é que numa situação daquelas ela teve a esperança de eu algum dia sobreviver.
mais uma vez teve razão.
agora tenho um guarda-fato, como o mesmo sobretudo e guarda-chuva, mas ainda espero pelo dia para ser aquilo que quero ser.

susemad disse...

Luiselmau,
agradeço o teu convite e até era pessoa de participar, mas ando num mês muito atribulado e sem palavras para deixar.
Até os meus tonsdeazul estão ao abandono...
Se as contextualizações continuarem quando eu tiver em forma... quem sabe se não... :)
Um abraço

Anónimo disse...

que distâncias suporta a passada que ainda não dei?

o bico do chapéu é rastro
de não sei que mundos...

caminhante, meu destino é ir.
talvez com esperanças de um dia andar sem nenhum peso...
ou sem passado,

cartografar fissuras no caminho!

o guarda-chuva faz ver a pedra por onde andei e não me vi.
mas a terra por onde sonho, não deixa marcas.

quero criar meu passo,
erguer do chão a minha sombra!

Anónimo disse...

Oi Luis! Estou a par da brincadeira.
Fiquei sensibilizado com a imagem e escrevi o que vai acima.
Li o blog e gostei de muito do que vi.

Um forte abraço soprado dos trópicos!

LuisElMau disse...

Fa, que bom que é poder finalmente brincar contigo, pelo menos aqui como já disse noutro comentário.
Vou publicar a tua contextualização, como faço com todas e digo-te já que adoro o teu texto, sempre que tiveres tempo e vontade não penses duas vezes, volta para brincar.

Mais um abraço enorme com a grande água pelo meio.