quinta-feira

Eram outros tempos, havia muito mais pobreza neste país, que não restem dúvidas sobre isto. Eram tempos em que se dava prioridade aos homens para estudar, as meninas podiam perfeitamente ficar em casa a aprender as lides domésticas para mais tarde serem esposas de um homem, trabalhador, abonado e respeitador assim se sonhava.

Em tempos de escassez ter um filho era um enorme risco e aventura, ter dois era uma loucura e ter mais que dois era como jogar na lotaria, na esperança que todos sobrevivessem e algum no futuro tivesse dinheiro para proporcionar uma velhice descansada aos pais.

Para eles a gravidez tinha sido um acidente, forma fugaz que contem em si a tentativa de aceitar e apaziguar a verdade, quem brinca com o fogo acaba por se queimar um dia. Foi um acidente, o fósforo acendeu com uma chama muito alta. Tantos fósforos acendeu, algum deles um dia os iria queimar.

Assumiram a gravidez, casaram, foram viver juntos para uma pequena casa na aldeia. Cinco meses depois da mudança era chegada a hora de receber o fruto do acidente. Nessa tarde, por pressentir e perceber que era chegada a hora, ela foi para casa da sua mãe e a parteira da aldeia foi lá ter. Às onze da noite começou a hora curta.

Ao invés de um, a parteira trouxe ao mundo dois seres humanos. Afinal a barriga tão grande tinha uma explicação lógica, eram gémeos. Já todos tinham pensado e percebido isso, ninguém se atrevia a afirmar.

Duas bocas, duas goelas, quatro ouvidos, um infinito mistério cerebral e interior ao quadrado.

Um rapaz e uma rapariga.

Até à quarta classe foram colegas de sala de aula, depois separaram-se. Ela já sabia ler e escrever era o bastante para uma rapariga. Ele foi para o primeiro ano do ciclo na vila mais próxima.

A obrigação deu-lhe uma enorme resistência para estudar, era uma chatice, fingia que estudava e lá foi conseguindo passar de ano, sempre sem um futuro muito risonho pela sua frente.

A proibição deu-lhe uma enorme vontade de aprender, de noite, quando todos dormiam em casa, levantava-se e roubava os livros do irmão. Lia-os com toda a atenção e com enorme prazer, fazia os trabalhos de casa que não eram para ela, lia as perguntas dos testes e tentava dar-lhes resposta. Volta e meia surpreendia a família ao dar resposta a dúvidas do irmão sobre coisas que os pais nunca tinham ouvido falar. Foi aprendendo por si e nunca perdeu a vontade de saber mais, cresceu com um futuro assustador à sua frente, Olha que os homens não querem mulheres muito inteligentes, ouvia.

O tempo passou, e ao passar gerou a mudança. Com os novos programas para dotar as pessoas com a escolaridade mínima, tirou o nono ano sem pestanejar, e não parou de estudar e aprender. Aos quarenta e cinco anos formou-se em sociologia, sempre a trabalhar ao mesmo tempo, na grande cidade. Hoje é professora, nem outra coisa poderia ser.

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