quinta-feira

Era terça-feira, estava uma manhã cheia de nevoeiro. 8:00 são os números no relógio, pinnnnn é o som no despertador.
Acordou, Luís acordou de mais uma noite, de mais um sonho, de mais um pesadelo.

Já não aguento mais, todas as noites é isto, sonho com isto há meses, sonho todas as noites com o mesmo, este pesadelo persegue-me, preciso saber se mais alguém tem este pesadelo, preciso saber se alguém sofre como eu, preciso saber se posso partilhar isto com alguém, preciso saber se não sou o único, preciso de algo rapidamente.
O Telefone.
É vermelho finalmente, ainda há pouco era preto, cinzento, escuro. Agora é vermelho, reflecte o meu espaço, cheio de luz.

Neste momento o telefone parecia-lhe realmente vermelho, tinha uma forma equilibrada, parecia fácil de utilizar, estava sem pó, resplandecia luz. O auscultador era leve, não pesava nada, onde ponha a orelha era um sítio cómodo, quando lá encostava o ouvido, não era mais preciso segurar o telefone, ele ficava a flutuar na atmosfera. Por onde falava, era um ouvido aberto, era como que um amigo que está sempre presente quando é preciso, estava lá sempre pronto a ouvir tudo o que lhe queríamos dizer, por onde Luís ouvia, agora, sabia que iria sempre ouvir resposta, nunca o silêncio, nunca a indiferença. O auscultador agora auscultava a dor.

Vou telefonar a alguém.
Tenho que contar este pesadelo que me persegue, a alguém.
Tenho que tornar de alguma forma pública a minha dor.
3230808, impedido.
4318888, …, …, está a chamar…

- Está?
- Está, Hugo?
- Sim, quem fala?
- Sou eu o Luís, acordei-te?
- Não, …, fala.
- Preciso falar com alguém, acordei agora, mais uma vez tive um pesadelo que tenho, há messes, já não aguento mais, preciso contá-lo a alguém, estou cansado de o guardar para mim, queres ouvir?
- Calma meu, fala, é só um pesadelo.
- Não é isso, é grave, não é só um pesadelo, é a minha vida, durmo quase metade da minha vida e, então, passo metade da minha vida a viver este pesadelo horrível, e a outra metade a tentar não me lembrar dele, sem nunca conseguir esquece-lo. Estou cansado, estou farto, nada do que faço quando estou acordado me faz esquece-lo de vez, quando estou com vocês apenas consigo não lembra-lo por uns momentos, depois ele volta sempre, às vezes volta mais forte.
- Calma, queres que eu vá ai?
- Não, isso demorava tempo, já não tenho tempo, quero contar-to já.
- Força.
- Imagina um corredor no nada, é mesmo um corredor no nada, não vês o fundo do corredor, nem o inicio. Esse corredor por vezes tem algumas janelas mas as janelas apenas mostram imagens do meu passado. Todas as janelas que tento abrir não consigo, fico apenas como espectador do meu passado a passar. São sempre imagens felizes, são sempre imagens de momentos felizes do meu passado, mas que agora já não posso viver, apenas observar, por vezes eu apareço nessas imagens, ou pelo menos penso que sou eu, mas fisicamente é outra pessoa, mais alta, mais gorda, mais bonita.
- Então e tu andas só a passear nesse corredor? Não acontece mais nada a noite toda?
- Não é bem assim, imagina que te estás a ver como se estivesses fora do teu próprio corpo, inicialmente o sonho é assim, eu estou a ver-me caminhar por esse corredor que penso ser um corredor de hotel, ou coisa parecida, porque as portas têm todas números, e são muitos números. Eu começo a caminhar no corredor sempre no número oito. Primeiro tenho uma visão muito geral do espaço, que está bem iluminado por muitas janelas, todas elas quadros de momentos felizes do meu passado, eu estou a ver-me relativamente ao longe e começo a caminhar, vejo a porta oito, nove, dez, onze…. À medida que vou andando as janelas vão sendo menos e o espaço começa a ficar escuro, vou também aproximando-me da imagem de mim, mas ao mesmo tempo que me aproximo de mim, em principio deveria começar a ver-me melhor, mas não, parece que a imagem de mim vai desaparecendo aos poucos, como se o facto de já só existirem momentos felizes no meu passado transformarem o meu presente em algo destrutivo e não construtivo, logo se já não estou a construir o meu presente, não vou ter memórias dele quando ele for passado, logo vou ter um futuro sem memórias, que seria o mesmo que não ter futuro.

De repente, … não mais que de repente, o telefone começa a mudar de cor como se de um camaleão se tratasse, começa também a mudar de forma, o que dantes era um ouvido por onde Luís falava, começa agora a parecer uma boca que vai mastigando e cuspindo todas as suas palavras.
Silêncio.

- Está? Luís estás ai ainda?
- Sim desculpa parece que estou a ver coisas, não devo andar bem. Bom nunca consigo chegar ao número 24, porque é quando passo no número 22 que tudo se perde, fico tão próximo da minha imagem que entro nela e começo a ver o corredor não como se estivesse fora da acção, fora de mim, mas agora vejo o corredor pelos meus olhos, só que antes de entrar em mim reparo que já só metade de mim tem alguma definição, que mesmo assim é muito pouca, a outra metade é um conjunto de imagens sem forma diluindo-se no ar. Aqui começa o pesadelo verdadeiramente, e dura toda a noite, porque chegando ao número 22, eu vejo duas porta mais ao longe, mas não consigo ver os números, calculo que sejam o 23 e o 24, depois do 24 não vejo mais nada, apesar do corredor continuar, o corredor já não tem mais janelas, do 22 em diante. Só que nunca consigo seguir no corredor, porque quando dou o primeiro passo já dentro de mim, começo simplesmente a cair, cair sem fim, não é voar, é cair. Por vezes caiu no início do corredor, outras noites acordo e ainda estou a cair, já aconteceu também cair em ambientes que não consigo descrever acordado, mas que me deixam sempre com uma sensação de desespero e angústia.

- Está Luís?
- Sim, estava a bocejar, estou cheio de sono, e parece que passei toda a vida a dormir, estou morto de cansaço.

Silêncio, o ruído irritante do silêncio começa a entrar na cabeça de Luís e a deixar marcas, marcas profundas. Não deve haver nada pior que o silêncio duro e pesado da indiferença.

- Está Hugo, ainda estás aí? Hugo! Hugo!

Nada só silêncio
Tentou desligar o telefone, já não conseguia, enquanto antes o telefone flutuava no ar, agora o cómodo auscultador tinha-se transformado numa âncora que agarra o seu ouvido e não pára de o puxar para baixo.
Luís já está deitado a arrastar no chão com o telefone a puxá-lo.
O telefone começou a marcar um número qualquer.

Estou outra vez a ver-me fora de mim.
Não, não pode ser, o telefone marcou o número 222 22 22…
Está impedido felizmente. Quem será que estará a falar para lá? Gostava de saber quem é, queria conhecer essa pessoa.
O telefone voltou a tentar outro número, agora tentou o 222 22 24.
Está a chamar…

4 opiniões:

Anónimo disse...

bom se uma destas noites precisares podes experimentar o meu numero :)

LuisElMau disse...

obrigado.
este texto foi escrito numa altura em que os números de telefone só tinham sete algarismos.
agora tenho menos pesadelos, felizmente. mas fico feliz por saber que tenho números para marcar.

Um Abraço.

Nuno 'Azelpds' Almeida disse...

Familiar, muito familiar...Tanto pelo teu lado, como pelo outro de quem te escuta, como ainda aconteceu esta semana quando tive a ajudar uma amiga minha às tantas da noite ao telefone, ou não fosse eu uma espécie de zombie eléctrico que "nunca" dorme. +_+

Ao menos tens menos pesadelos actualmente e, apesar de tudo o envolve este texto, adorei le-lo, tal como tantos por aqui. :)

Lucia disse...

Quando contas um sonho a um psicanalista, o que lhe interessa não é o conteúdo ou o significado do sonho, mas sim as palavras que usas para o contar. ;)

Eu tenho sempre um caderno ao lado da cama onde escrevo todos os sonhos que me perseguem, assim consigo esquece-los. Mas o que intriga mais é quando alguns anos depois sonho uma continuação.