sexta-feira

São sete horas da manhã, o despertador já devia ter tocado. Que se passa com este despertador? Mas afinal que horas são? Já nem o comprimido me põem a dormir.
Trim!!!!
Agora sim, são sete horas.
Levanta-se da cama, tem que ir acordar as crianças, elas tomaram banho ontem à noite, mas ela toma banho de manhã, enquanto as crianças percebem que um novo dia chegou.
Acorda primeiro a mais nova, que demora mais tempo a levantar-se, com a mais velha, apenas uma ordem já chega. Já viveu tempo suficiente para perceber como as coisas funcionam, com a mais nova ainda é necessário algum carinho.
Às sete e meia os cereais e o leite têm que ser introduzidos no organismo, antes das oito da manhã, todos têm que estar dentro do carro para seguir viagem.
Curva e contra curva, transito, aselhas, buzinas e notícias alarmantes no rádio, mais transito, mais mortes, mais roubos, mais juros, mais terroristas, mais raptos.
Entre as oito e um quarto e as oito e meia as crianças ficam na escola, no portão da entrada a auxiliar de educação informa a encarregada da mesma de que a directora da escola pretende ter uma palavra com ela. Apesar do tempo nunca parar, e do patrão já ter reclamado pelo menos uma vez esta semana, sobre a sua hora de chegada, ela não diz não e entra na escola para a tal palavra.
A directora da escola é curta, directa e grossa.
-passa-se alguma coisa em sua casa? A sua relação com o seu marido está bem? É que a sua filha mais nova tem tido reacções muito agressivas e revoltadas.
Pelo menos ainda alguém dá mostras de observar o que se passa à sua volta, é o que sente.
- sim é verdade, eu separei-me faz pouco tempo.
O tempo é sempre relativo.
- mas penso que elas estão a reagir da melhor maneira possível à situação, fico-lhe agradecida pelo cuidado.
São nove horas quando sai da escola e na verdade devia era estar a entrar no emprego, melhor dizendo, devia estar a sentar-se à secretária, com um sorriso nos lábios e uma voz feliz e apelativa para atender o telefone. E como o tempo só anda para a frente, e ainda tem a auto-estrada, parada à sua espera, já sabe que vai chegar atrasada e começa então a imaginar todos os diálogos possíveis e imaginários que vai ter com o patrão. A minha filha mais nova caiu na rua e feriu o joelho. O meu marido está doente e tive que ir à farmácia. Houve um acidente na entrada da auto-estrada. Tive um furo.
Trabalha das nove e meia até à uma e meia, já não se lembra o que disse ao patrão mas lembra-se que o mesmo não acreditou numa palavra. Já não se lembra o que fez durante essa manhã, mas lembra-se que às onze já só queria voltar para casa.
À uma e meia da tarde sai do escritório para ir almoçar com duas colegas de trabalho.
-e aquela mãe que matou os filhos?
-ontem fui aquela loja nova no shoping que está em promoções, comprei duas camisolas e uma camisa de noite muito sexy por vinte euros.
-não devia comer estas porcarias, estou cada vez mais gorda.
Às duas e meia da tarde está de volta à secretária, ao telefone, com o mesmo sorriso nos lábios de toda a semana e o patrão contínua com o mesmo ar sisudo de sempre.
Na revista cor-de-rosa que tem na gaveta, uma fotografia de um actor de telenovelas novo, faz surgir um suspiro no seu peito.
Depois de alguns telefonemas atendidos e encaminhados, depois de algumas cartas para fornecedores, depois de algumas reuniões agendadas, depois do hotel marcado para o patrão passar o fim de semana com a amante, o relógio da parede chega finalmente e a muito custo às cinco e meia. É hora de saída.
Não há condição financeira para deixar mais tempo as crianças na escola em actividades extracurriculares e por isso às seis ela tem que estar na escola. Quase nunca o consegue e por várias vezes foi já avisada para o facto.
Hoje a regra voltou a ser regra e não foi excepção. Eram seis e dez da tarde quando chegou à escola, as duas brincavam no recreio, a mais velha fugia da mais nova e não lhe dava a boneca, a mais nova chorava e corria atrás da irmã que ria.
Dentro do carro a discussão sobre a boneca continua, todo o mundo gira em volta desta boneca, Galileu estava errado. Ela nem sabe de que boneca as crianças falam. Tem que correr, vai deixar as filhas a casa da mãe, hoje é quarta-feira, é dia das filhas jantarem em casa dos avós, para ela poder ir ao curso de espanhol. Tem trinta e oito anos e não quer ficar sempre no mesmo sítio, pensa que se aprender uma língua estrangeira vai conseguir um emprego melhor e ganhar mais dinheiro. Mas não gosta de espanhóis e não consegue ter prazer em aprender a língua deles. No curso de espanhol existe em homem mais velho que a olha de uma forma diferente, ela gosta de ser olhada assim, mas não gosta de ser olhada assim pelo colega. Vive em completa dualidade mas a aula de espanhol no serão de quarta-feira continua a ser um dos pontos mais altos e esperados da semana.
São quase sete da noite quando deixa as filhas com a mãe, a mãe já tem uma sanduíche preparada para ela, como fazia nos tempos em que era criança. Come a sanduíche no carro enquanto guia para o curso e às sete e meia da noite está sentada na sua cadeira com uma mesita acoplada no lado direito, está tudo errado neste mundo, é canhota.
O dito colega não aparece, sente um misto de tristeza com alívio.
Às oito e meia da noite a aula de espanhol acaba. Despede-se da professora e dos restantes colegas, a maioria dos quais nem o nome lembra.
Antes das nove está de volta a casa dos pais, para ir buscar as filhas. Já jantaram, ainda não fizeram os trabalhos de casa e ainda não tomaram banho, e agora é de extrema importância para a continuidade da vida neste planeta, verem os desenhos animados até ao fim. O tempo começa a acabar. A energia também e a paciência já é uma memória longínqua.
Arrasta as filhas de oito e seis anos para o carro e ganha duas inimigas de morte por duas horas.
Às dez e meia da noite ambas estão na cama, amuadas, mas com o banho tomado e os trabalhos de casa feitos.
Ela prepara o pequeno-almoço do dia seguinte, toma banho, bebe um copo de vinho branco que tem no frigorífico e que a faz lembrar os primeiros tempos de namoro com o ex-marido. Senta-se em frente à televisão, não quer ver nada. Liga o computador, não está ninguém na net com quem queira falar. Pensa em telefonar ao ex-marido, mas apesar de desejar falar com ele, não quer lhe telefonar. Vai deitar-se, ainda pensa em não tomar o comprimido, mas depressa muda de ideias. Adormece.
E amanhã, não vai ser outro dia, vai ser o mesmo.

2 opiniões:

Meres disse...

Quando estamos sós, só nos lembramos de ligar aqueles que não devíamos! É um bicho feio a solidão!

LuisElMau disse...

a mim, um dia aconteceu, que senti e percebi que nunca estava com esse bicho feio. e que era eu que o fazia feio, passei a vesti-lo a rigor e a falar com ele olhos nos olhos e ele foi embora.
hoje muito raramente me sinto sozinho, mesmo que não esteja aparentemente acompanhado.
beijos maria.