quarta-feira

Não quer dizer nada.
Desconfia não ser ouvido.
Os surdos ouvem por gestos.
Está cansado, quer parar.
Não existe ao seu redor.
Ninguém o vê, mesmo que na sua direcção olhe.
É libertador, as crianças brincam e gritam à minha esquerda.
Ele pode berrar, à vontade, basta não abrir a boca.
Mesmo que a escancarasse, o berro que se ouviria aqui, nunca seria o grito que carrega.
Está incapaz de se relacionar com a realidade.
Tudo é simplesmente muito impessoal, estranho e ao mesmo tempo, claro, obvio e certo.
Quem está mal?
Muda-se!
E isso tem sido o verdadeiro desafio, a mais completa dificuldade.
Mudar.
Os defeitos continuam os mesmos.
As qualidades, tem conseguido muda-las, para pior.
Continua a gaguejar ao telefone.
Mas agora já não fala ao telefone e brinca com isso.
Escreve mensagens e não brinca com isso.

A sua vida agora, resume-se a isto.
Deixar escorrer tinta azul, em papel branco.
Palavras inconsequentes
Ideias esdrúxulas
Conceitos banais
Melodramas injustificáveis
Ficções vividas
Solidões tangíveis
Resignações
A sua vida agora não se resume a escrever.
A sua vida agora resume-se a esquecer.

Gosta muito de falar, mas anda calado e gosta ainda mais, ser ouvido.
Gosta de escrever, mas escreve principalmente para ser lido, e gosta muito mais de ler o que escreve, do que escrever o que lê.
Gosta de observar mas vive com a ilusão de estar sempre a ser observado e isso dá-lhe um imenso prazer.
É narciso, apesar de não gostar muito dele.

Está literalmente sozinho.
Sozinho.

E de súbito o encontro furtivo começa a surgir na sua vida, já se sentiu completamente isolado.
O passeio está húmido, molhado mesmo. Chove em Lisboa, faz três horas que começou a ameaçar mas ameaçou por pouco tempo, mal ameaçou, agiu. Quase nem esperou para ver a reacção à ameaça.
O passeio é estreito, dois seres humanos, na nossa escala. Nem grandes nem pequenos, vistos de fora. Para não se tocarem, para garantir isso, algum deles terá que pisar a estrada, cinzenta e brilhante, que reflecte o teu céu, cinzento num fundo preto.
Faltam cinco metros para chegarem ao momento da decisão, mas nenhum deles se apercebeu disso, iam ambos a caminhar num outro passeio qualquer e nesse, nem um nem outro existiam mutuamente.
Um
Dois
Três
Quatro
Deixaram para o derradeiro metro a decisão, para o último segundo, para o momento presente. Porque um momento não é feito só de tempo, é feito de espaço também. Não podemos falar de adiar, nem um nem outro estavam a adiar nada, nem um nem outro existiam fora do seu próprio passeio.
Chocaram.
Já era noite, mas foi como se tivessem acabado de acordar, o olhar de desculpa que lançaram um ou outro, nos olhos tinham um tom de alvorada. Vinham os dois adormecidos e ao chocarem formam forçados a acordar por instantes. Depois voltaram a adormecer, neste sono constante em que vivemos, mas sonharam um com o outro.
Sonharam um com o outro.

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